A nova 'febre de Miami', que atrai pessoas e negócios de outras regiões dos EUA e do mundo
Algo está acontecendo em Miami — e cada vez mais rápido.
Por Guillermo D. Olmo @BBCgolmo - BBC News Mundo, Miami
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A cidade do Sul da Flórida está atraindo pessoas e negócios de outras partes dos Estados Unidos e do mundo, se tornando também um dos novos centros de referência para muitos projetos de empreendedorismo na área de tecnologia.
As comparações com o Vale do Silício, o grande centro tecnológico da Califórnia, se tornaram comuns em artigos de jornais e no discurso de alguns políticos locais.
"Nunca vimos nada parecido antes", diz à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, Rebecca Danta, da empresa Miami Angels, que se dedica a fazer a ponte entre sócios capitalistas interessados em investir e empreendedores do setor de tecnologia em busca de financiamento para seus projetos.
Para ela, Miami está se beneficiando "da descentralização gerada pela pandemia", que levou muitos profissionais que trabalham remotamente de estados americanos em que as restrições impostas pela pandemia de covid-19 eram mais severas a buscar um clima mais ameno, mais liberdade e menos impostos.
Em artigo publicado no jornal Miami Herald, Craig Studniky, diretor-executivo da agência imobiliária Related ISG Realty, disse que "durante anos, o sul da Flórida viu um aumento populacional de mais de 900 pessoas por dia", mas a pandemia "agiu como o catalisador de um dos maiores aumentos na migração já vistos".
O fenômeno se reflete no mercado imobiliário, com um aumento interanual de 39,8% nas vendas nos primeiros quatro meses de 2021, de acordo com dados da associação de corretores de imóveis da cidade.
Esse boom do mercado imobiliário é justamente o que preocupa muitos políticos e ativistas locais, que veem como isso dificulta o acesso à moradia para famílias de trabalhadores e de classe média, em uma das cidades mais desiguais dos Estados Unidos.
O que está acontecendo
A cidade de Miami é um centro financeiro de referência para a América Latina e tradicionalmente recebe imigrantes procedentes dessa região — é ainda destino habitual de turistas de outras partes dos Estados Unidos, inclusive estudantes que costumam curtir Miami Beach nas férias de primavera, o chamado "spring break".
No imaginário popular, Miami foi imortalizada na década de 1980 com a série de televisão Miami Vice, em que a dupla de policiais interpretada por Don Johnson e Philip Michael Thomas perseguia traficantes de drogas inescrupulosos a bordo de uma Ferrari conversível.
A trama da série refletia o papel da cidade como a grande lavanderia do narcotráfico continental, mas o tipo de capital econômico e humano que agora flui até aqui parece ser diferente.
"A demanda por moradia está perto de um nível recorde, à medida que mais compradores do nordeste e da costa oeste, assim como empresas financeiras e de tecnologia, se mudam para cá", diz o relatório dos corretores de imóveis.
O jovem empreendedor Delian Asparouhov é uma das caras da nova migração para Miami.
Sócio da startup espacial Varda Space Industries e da Funders Fund, ele é um dos que trocou a Califórnia pela Flórida nos últimos tempos.
"Eu morava na baía de São Francisco desde 2013, mas em abril minha namorada e eu nos mudamos para cá."
Eles compraram um apartamento em Wynwood, uma área que por décadas foi um bairro para imigrantes e trabalhadores de baixa renda e agora é o cobiçado distrito de arte e design de Miami.
"Tenho encontros mais produtivos pessoalmente, trabalho mais, sou mais feliz, tomo mais sol, estou mais em forma, como melhor e minha namorada está mais contente. Até agora, só vantagens."
Uma das coisas que animaram Asparouhov foi a resposta inesperada que obteve antes de se mudar. "E se levássemos o Vale do Silício para Miami?", se perguntou.
E Francis Suarez, prefeito da cidade de Miami, respondeu: "Como posso ajudar?"
Foi um dos marcos da campanha do prefeito para transformar Miami em um novo centro de empreendedorismo tecnológico, na qual está empenhado há vários anos.
"Queremos estar na próxima onda de inovação", disse Suarez ao jornal New York Times. O prefeito é visto nas feiras de tecnologia que acontecem com cada vez mais frequência em Miami.
Recentemente, ele propôs aceitar o bitcoin como pagamento de impostos e usá-lo para pagar funcionários públicos, uma ideia que lhe rendeu ainda mais fãs na comunidade de entusiastas da criptomoeda.
Os esforços do prefeito parecem ter começado a dar frutos nos últimos meses, quando figuras do mundo corporativo como Carl Icahn, um dos investidores mais bem-sucedidos de Wall Street segundo a revista Forbes, e Antonio Gracias, presidente do comitê de investimentos da Tesla, se estabeleceram em Miami.
Mas a iniciativa de Suarez não é o único incentivo oficial para a migração para Miami.
A cidade também se beneficia do fato de a Flórida ser um dos nove estados do país que não cobra imposto de renda estadual, o que é um grande incentivo para pessoas físicas e jurídicas que pensam em se instalar por ali.
Rebecca Danta afirma que "embora a pandemia tenha acelerado (o processo), o que está acontecendo em Miami é algo que se busca há muito tempo".
Consequências
Delian Asparouhov acredita que, no geral, "haverá um aumento no padrão de vida aqui, visto que muitas empresas contratam engenheiros de universidades locais" e "empresas de tecnologia costumam trazer muita prosperidade aonde quer que vão".
Mas o processo pode ter outros efeitos indesejados, além do desembarque temporário de profissionais que fugiram das restrições em seus locais de origem.
Eileen Higgins, comissária do Distrito 5 do condado de Miami-Dade, que compreende o centro da cidade, diz à BBC News Mundo que "o que está acontecendo é muito preocupante".
"A chegada das empresas de tecnologia é uma boa notícia, porque gera empregos, mas em Miami temos uma crise histórica de acesso à moradia e isso pode piorar ainda mais as coisas, dificultando muito para que famílias de trabalhadores e de classe média tenham um lugar para morar."
A comissária propõe o uso de terras públicas para a construção de moradias sociais e destaca uma das peculiaridades do mercado imobiliário de Miami. "Muitas das casas aqui não são casas, mas contas bancárias", diz ela, se referindo aos imóveis comprados por investidores de países latino-americanos para proteger suas economias da instabilidade em seus países de origem.
Higgins teme que Miami comece a ver o filme cujo final já é conhecido na Califórnia, onde "a revolução tecnológica levou a uma crise de moradia", e lembra que a cidade da Flórida sofre com "altos níveis de desigualdade", uma vez que "aqui há muita gente que vive de empregos mal remunerados".
A desigualdade também é um problema com conotações raciais. De acordo com um relatório da empresa Clever Real Estate e da ONG Dream Builders for Equality, a área de Miami e as regiões vizinhas de Fort Lauderdale e West Palm Beach ficaram em quarto lugar na lista de 15 concentrações urbanas americanas com a maior disparidade no valor das propriedades entre distritos com população majoritariamente negra e os demais.
Nos de maioria negra, o valor médio dos imóveis era 478% menor.
Segundo um corretor de imóveis que preferiu não se identificar, "o mercado está agora extremamente aquecido". Há muita demanda para pouca oferta, o que incentiva os proprietários a dispensar seus inquilinos para vender os imóveis.
Foi isso que aconteceu com os moradores do estacionamento de trailers Paradise Park na área de Allapattah, que recentemente receberam um aviso de despejo porque o terreno foi vendido para uma empresa que planeja construir nele.
Davalyn Suárez, advogado que representa a associação de inquilinos, disse à rede NBC que "isso está acontecendo com muita frequência, e as moradias a preços acessíveis estão se tornando mais escassas"
"A tendência é que comprem o terreno onde estão esses trailers e construam prédios de apartamentos, que podem alugar para mais pessoas e por mais dinheiro."
E muitos desses terrenos onde vivem pessoas com menos recursos estão em áreas que se tornaram mais cobiçadas precisamente porque não estão no litoral e são menos vulneráveis à elevação do nível do mar, um problema sério que Miami enfrentará nas próximas décadas.
Rebecca Danta, da Miami Angels, acredita que o fluxo de novos moradores com maior poder aquisitivo pode ser a solução para alguns dos problemas que esse fenômeno impõe.
"Sabemos que em lugares como Nova York e a Baía de São Francisco, que tiveram um boom na economia tecnológica, isso gerou grandes diferenças de renda, e já em 2013 Miami tinha uma das maiores diferenças entre o custo de vida e a renda média. Uma das maneiras de enfrentar esse problema é gerar empregos mais bem remunerados, e o setor que faz isso é o da tecnologia."
Seja qual for o resultado, Danta não acredita que a "febre" de viver e investir em Miami vá diminuir no curto prazo: "Veio para ficar, e Miami será um lugar relevante por muitos anos."
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