HOME OFFICE: COMO TRABALHAR PARA UMA EMPRESA NO EXTERIOR SEM SAIR DO BRASIL
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Por Estadão — São Paulo - 21/03/2021
Texto: Renée Pereira e Luciana Dyniewicz
É entre 10h e 14h no horário de Brasília - quando é fim do dia na Europa e manhã na costa oeste dos Estados Unidos - que o programador Renan Bandeira consegue encontrar, simultaneamente, o maior número de colegas de trabalho online. Apesar de morar em Fortaleza, Bandeira trabalha para uma empresa americana que tem 80 funcionários (outros três brasileiros) espalhados pelo globo.
O caso mostra como a expansão do home office – forçada pela pandemia do coronavírus – trouxe grandes transformações ao mundo corporativo e abriu as fronteiras para o mercado de trabalho. Nos últimos meses, empresas de várias partes do mundo, como a em que Bandeira trabalha, decidiram buscar no Brasil talentos para compor seus times. Ao contrário do movimento percebido antes da pandemia, agora os chamados ‘expatriados virtuais’ não precisam nem de passaporte para trabalhar fora do País e, em alguns casos, nem de inglês fluente. De casa, fazem seus trabalhos e prestam contas para superiores no exterior.
Bandeira faz parte de um grupo no Whatsapp de profissionais de TI em Fortaleza que trabalham remotamente. São 70 pessoas no grupo, cerca de 90% contratados por empresas de fora. Grande parte deles ainda quer ir para o exterior para morar e trabalhar, diz ele.
“O mercado de TI se assemelha muito ao do futebol. Os jogadores querem ir pra fora. Eu não descarto ir. Mas, hoje, financeiramente, é muito melhor morar aqui e trabalhar para fora. E aí você também tem a possibilidade de ficar perto da família.”
Demanda pelo mundo
Países que mais têm demandado trabalho de brasileiros em home office.
O movimento teve início antes da pandemia, mas foi acelerado pelo isolamento social, que provocou um êxodo urbano importante, diz o diretor de Recrutamento da Robert Half, Lucas Nogueira. Além disso, a desvalorização do real frente ao dólar fortaleceu a tendência. Com a moeda nacional mais fraca, a mão de obra brasileira virou uma solução barata para as companhias estrangeiras. Ficou vantajoso para ambos os lados - a empresa gasta menos e o trabalhador ganha mais em relação ao mercado interno.
“O mercado de TI se assemelha muito ao do futebol. Os jogadores querem ir pra fora. Eu não descarto ir.”
Renan Bandeira, programador
Em alguns casos, o salário pago por companhias estrangeiras chega a ser mais que o dobro da remuneração brasileira. Segundo Luciano Montezzo, da 99hunters, uma posição que paga R$ 8 mil no Brasil pode chegar a R$ 20 mil no exterior. No caso do engenheiro de software Lucas Vasconcelos, de 25 anos, o aumento do salário comparado ao mercado doméstico foi de 200%. Desde o fim do ano passado, quando saiu de uma empresa no Brasil, ele presta serviço para uma startup nos Estados Unidos. “Meu amigo sempre me chamava para trabalhar fora, mas achava que não estava preparado. Com a pandemia, tomei coragem, mandei meu currículo e fui chamado.”
A demanda mais forte por profissionais brasileiros tem ocorrido nas vagas de tecnologia – área em que o Brasil mesmo tem um déficit de 250 mil profissionais. A gerente de recrutamento para tecnologia da Michael Page, Luana Castro, afirma que, em 2020, percebeu um aumento de 30% na busca de empresas de fora por desenvolvedores brasileiros. “No passado, já existia esse movimento. Mas era mais restrito, porque as empresas tinham de conseguir o visto de trabalho para o funcionário. Com a pandemia, não é mais necessário que a pessoa mude de país. Ela fica aqui e trabalha de forma remota.”
Profissionais contratados
Segundo a executiva, esse movimento é semelhante ao que ocorre há anos na Índia. No país, a mão de obra barata, a desregulamentação de leis trabalhistas e políticas do governo para atrair empresas estrangeiras impulsionaram o desenvolvimento tecnológico. No caso do Brasil, porém, não há a vinda de companhias.
Aqui, ao contrário do país asiático, o idioma também sempre foi um dificultador. Agora, porém, diante da falta global de mão de obra, algumas empresas nem estão mais exigindo fluência na língua. De acordo com Luana, há casos em que são contratados profissionais com um nível de inglês intermediário e um gestor que fala português acaba fazendo a interlocução.
No caso dos profissionais da área de tecnologia, além da questão do custo da mão de obra, a busca por brasileiros se deve ao perfil dos profissionais, afirma o presidente da empresa de recursos humanos Randstad, Fábio Battaglia. Segundo ele, aqui um desenvolvedor é mais generalista, aprende várias linguagens e não se limita a ser especialista de um único código. “Essa mão de obra, mais resiliente e criativa, tem sido muito valorizada por empresas no exterior.”
Battaglia afirma que só no primeiro trimestre deste ano a demanda por profissionais brasileiros na Randstad já bateu todo o volume do segundo semestre do ano passado. E deve continuar crescendo não só na área de tecnologia como em outros segmentos, de infraestrutura, marketing e design. A relações públicas Marcela Pfister, por exemplo, foi contratada no ano passado para uma vaga para customer sucess – uma função nova que envolve ajudar o cliente no uso de produtos e serviços numa determinada plataforma.
“O desenvolvedor brasileiro tem sido demandado porque é mais generalista, aprende várias linguagens e não se limita a ser especialista de um único código.”
Fábio Battaglia, presidente da Randstad
A empresa de Marcela é uma startup de software de eventos corporativos virtuais que fica nos Estados Unidos. Nesse caso, ela não precisa saber “codificar” – ou seja, desenvolver nenhum programa –, mas precisa entender um pouco do assunto. Ela conta que a companhia tem crescido rapidamente e está contratando novos profissionais, e os brasileiros estão no radar. “Quando cheguei eram 20 pessoas, hoje tem 108 e até o fim do ano querem alcançar 300.”
Mas existem questões legais que precisam ser consideradas. Para trabalhar numa empresa americana, por exemplo, o brasileiro precisa seguir a legislação do país, diz o diretor de recrutamento da Robert Half, Lucas Nogueira. A restrição, no entanto, tem sido contornada com intermediação de empresas brasileiras – alternativa permitida desde a nova lei trabalhista de 2017, no governo Temer.
Empresas de recrutamento como a Robert Half, Michael Page e Randstad têm feito esse papel de terceirizar o trabalho. Elas contratam o brasileiro, cobram da empresa estrangeira e repassam para o trabalhador, que responde aos líderes no exterior. Outra opção é a prestação de serviço por pessoa jurídica, diz Luciano Montezzo, da 99hunters. Nesse caso, o trabalhador negocia e recebe direto da empresa estrangeira.
Caminhos do trabalho remoto no exterior
Como é a contratação de brasileiros por empresas no exterior para trabalhar em home office no Brasil.
Isso pode ocorrer de várias formas, até mesmo em criptomoedas. Outros usam aplicativos ou empresas de serviços financeiros para receber em dólar a remuneração. Muitos contam com a ajuda de contadores para deixar a situação regularizada e pagar todos os impostos envolvidos, como foi o caso de Diego Pisani, de 20 anos. Em dezembro, ele trocou um emprego numa empresa brasileira por uma companhia na Austrália e recebe por meio de empresas de remessas internacionais. “Eles pagam o IOF da transferência e eu pago os demais impostos aqui.”
O advogado tributarista Eduardo Bomfim, sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, afirma que o profissional deve recolher os impostos como qualquer outro prestador de serviços. Se receber em criptomoeda, os impostos devem ser pagos pelo valor do serviço prestado. Depois, se a moeda for vendida com lucro, haverá também uma tributação sobre ganhos de capital.
Brasil tem déficit de 250 mil profissionais na área de tecnologia
Para o professor Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação da USP, a tendência de os profissionais trabalharem fora sem sair do País é positiva, pois permite um intercâmbio de conhecimento com alguns centros de desenvolvimento de tecnologia de ponta.
“O Brasil precisa dessa interação. E não é só o profissional contratado que ganha. Ele pode qualificar algum ajudante e ensinar o que aprendeu na empresa.”
Arbix avalia que, se as empresas locais não querem perder esses trabalhadores qualificados para o exterior, precisam melhorar os salários - o que não é feito, segundo o professor. Como o Brasil tem uma carência de 250 mil profissionais na área, o esperado seria um aumento bastante elevado nas remunerações.
“As empresas resistem em contratar gente de qualidade, com várias exceções, claro. Elas olham a participação no mercado com uma visão curta. Enquanto estão faturando, não veem necessidade de avançar.”
"O Brasil precisa dessa interação. E não é só o profissional contratado que ganha. Ele pode qualificar algum ajudante e ensinar o que aprendeu na empresa.”
Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação da USP.
O diretor da Crown World Mobility, Haroldo Modesto, tem uma visão um pouco diferente. Ele defende que seja feita uma análise detalhada de cada situação para avaliar possíveis riscos para todas as partes. Para citar alguns : trabalhista , tributário, previdenciário e definir as responsabilidades de cada parte. “Se amanhã alguém entrar na Justiça, a empresa que faz a intermediação pode ser solidária e terá de responder por isso, dependendo da atividade exercida"
BENEFÍCIOS DIFERENTES
“A empresa em que trabalho concede férias ilimitadas”
Formado em Computação, Renan Bandeira, de 28 anos, começou a trabalhar para uma empresa americana há apenas dois meses, mas, se quiser, já pode tirar férias. Entre os benefícios para os funcionários, a companhia oferece férias ilimitadas, desde que combinadas com o chefe.
Apesar de essa ser uma política bastante diferente para os padrões brasileiros, não foi nem isso que mais causou estranhamento em Bandeira quando ele “chegou” à nova empresa. “O choque que tive mesmo foi mais cultural. As pessoas não levam as coisas para o lado pessoal. Se você tem alguma discussão ali, está tudo bem”, conta ele, que mora em Fortaleza.
Outra cultura corporativa que tem animado Bandeira é a maior transparência. A empresa compartilha semanalmente com os funcionários informações sobre sua situação de caixa e vendas realizadas. “Você se sente parte daquele negócio.”
O programador ainda espera a pandemia passar para conhecer pessoalmente os colegas de trabalho. Uma vez por ano, a empresa costuma organizar uma viagem para algum lugar do mundo para todos os funcionários se reunirem presencialmente. No ano passado, por causa do coronavírus, a companhia repartiu o orçamento dessa reunião para que cada trabalhador fizesse uma doação a uma instituição de caridade.
"O choque que tive mesmo foi mais cultural. As pessoas não levam as coisas para o lado pessoal. Se você tem alguma discussão ali, está tudo bem”
Renan Bandeira
Bandeira conta que, quando começou a procurar vagas em empresas do exterior, encontrou dois perfis de companhias: as que buscam mão de obra barata (e que pagam salários semelhantes aos do Brasil) e as que querem um profissional qualificado de qualquer parte do mundo porque não há mais disponível no país em que estão. Nessas, um brasileiro pode receber o dobro do que ganharia se trabalhasse para uma companhia local.
Como o salário é em dólar, em real acaba variando de um mês para outro, Bandeira procura organizar seu orçamento considerando um câmbio de R$ 3 o dólar. Se o dólar vale mais do que isso (R$ 5,75 hoje), ele economiza todo o restante. “Pra mim, se o dólar estivesse abaixo de R$ 3, não valeria a pena o trabalho”, conta ele, cuja remuneração dobrou desde que começou a trabalhar para fora.
INLCUSÃO FEMININA
“Com 9 meses de gravidez, fui contratada por uma startup nos EUA”
Aos 36 anos, Marcela Pfister já morou e trabalhou no Japão, na Austrália, em Dubai e na França. No começo de 2020, grávida da terceira filha, ela e o marido decidiram voltar ao Brasil e tentar uma vida nova em Atibaia, no interior de São Paulo. Mas, logo em seguida, veio a pandemia
e muitos planos tiveram de ser adiados. Um dia, navegando pelo Linkedin, Marcela viu o anúncio de uma vaga de home office no exterior.
Embora tivesse pouca crença de que seria contratada por causa da gravidez, ela enviou o currículo e foi chamada para uma entrevista numa startup de eventos corporativos virtuais. “Logo de cara, falei que estava grávida de nove meses e, ainda assim, eles me aceitaram.”
Marcela foi contratada para uma função considerada nova: de customer success, que envolve ajudar o cliente no uso de produtos e serviços numa determinada plataforma. Formada em relações públicas, recentemente ela ganhou uma nova atribuição, que é a elaboração de artigos internos em francês. Ela acredita que o conhecimento de várias línguas ajudou na conquista da vaga. “No meu caso, o inglês era um pré-requisito, mas o conhecimento em outros idiomas também contava.”
A exemplo de outros profissionais, a brasileira foi contratada como pessoa jurídica e segue as regras americanas. “Nos feriados nacionais, por exemplo, eu trabalho normal”, diz Marcela, que recebe o salário direto em seu banco no Brasil, em reais.
FUSO HORÁRIO
“Reuniões são feitas no início da noite de domingo, quando já é segunda de manhã na Austrália”
Em dezembro do ano passado, Diego Pisani decidiu trocar o emprego numa companhia nacional por uma companhia de cibersegurança na Austrália. Apesar da diferença no fuso horário, ele não teve dificuldades de se adaptar. “Sempre gostei de trabalhar à noite. Então, para mim, não fez muita diferença”, diz o profissional. Além disso, completa ele, a empresa dá liberdade para os funcionários fazerem seus horários, desde que entreguem a tarefa pedida dentro do cronograma estabelecido.
Ele conta que a única coisa fora da rotina são as reuniões no fim do dia de domingo, quando na Austrália já é segunda de manhã. Mas esse não é um fator que incomoda Pisani, de 20 anos. Apesar de não ter faculdade na área, ele fez um curso intensivo em programação assim que saiu do ensino médio. Desde então, vem atuando como desenvolvedor. “Com oito ou nove anos já sabia programar. Aprendi cedo.”
Pisani foi contratado como pessoa jurídica e recebe por meio de empresas de remessa de recursos. “Eles fazem a transferência do dinheiro e pagam o IOF na transação. Aqui eu recolho os impostos respectivos”, diz o brasileiro, que tem a ajuda de um contador para fazer esse trabalho.
PRÁTICA DE IDIOMA
‘É uma boa alternativa trabalhar remotamente, treinar o inglês, para, no futuro, ir para o exterior’
Emanuel Oliveira trabalha na área de tecnologia desde 2011 e sempre teve vontade de atuar no exterior, mas via o idioma como uma barreira. Apesar de ler em inglês, tinha dificuldade para falar.
Quando começou a pandemia e passou a trabalhar remotamente, percebeu que poderia tentar alguma vaga em uma empresa de fora sem sair de sua casa, em Quixadá (CE).
“Foi uma boa alternativa. Depois vi que poderia ser um caminho melhor. Ter essa oportunidade remota, ir treinando o inglês, para, no futuro, ir para Estados Unidos, Canadá, Austrália ou Europa.”
Pouco antes da quarentena, ele havia feito aulas de inglês e já conversava melhor no idioma quando fez a seleção para uma empresa com sede na Polônia que desenvolve plataformas para terceiros. Oliveira procurou vagas no LinkedIn, no site das empresas e em grupos no Telegram. Percebeu que, quando colocou no LinkedIn que estava aberto a novas oportunidades, passou a receber vários convites para processos seletivos.
Oliveira recebe em dólar por meio de um site que faz remessas e que, dependendo do valor, pede o contrato de prestação de serviço para realizar a transferência. Considerando que antes, quando trabalhava para uma empresa brasileira, recebia décimo-terceiro e o terço adicional de férias, ele ganha hoje 50% a mais.
“Tenho amigos que estão trabalhando na Europa. Eles comentam que é uma experiência única. Me chamam para ir e dizem que podem me indicar. Mas não dá para ir agora (por causa da pandemia).” – Emanuel Oliveira
Apesar da diferença de quatro horas de fuso entre Brasil e Polônia, Oliveira trabalha no horário brasileiro. As reuniões se concentram no período da manhã do Brasil, quando o escritório na Polônia está aberto. Durante a tarde, ele faz mais as tarefas que independem de ter alguém trabalhando no país-sede.
Oliveira trabalha para a empresa estrangeira desde dezembro e, apesar da distância que separa o Brasil da Polônia, já conheceu pessoalmente o presidente da companhia. “Ele veio para o Brasil no fim do ano passado para praticar kitesurf no Ceará e trouxe uma bebida polonesa de presente de casamento para mim”, conta, animado, o programador.
SALTO NO SALÁRIO
“Minha renda aumentou 200%”
Há algum tempo, o engenheiro de software Lucas Vasconcelos vinha acompanhando de perto a movimentação de um grupo de amigos que, de casa, prestava serviço para o exterior. Apesar dos incentivos, ele sentia que ainda não estava preparado para encarar essa nova experiência. Mas, com a chegada da pandemia e tendo de fazer home office na empresa em que trabalhava, ganhou confiança e mandou currículo para uma companhia nos Estados Unidos. “Fiz a entrevista e consegui o emprego.”
A adaptação para um sistema totalmente online e sem infraestrutura física não foi fácil, sobretudo porque Vasconcelos tinha insegurança em relação ao seu nível de inglês. Mas, aos poucos, ele foi se soltando e percebendo que a comunicação não era um problema. “Hoje toda interação ocorre por meio de reuniões virtuais, onde discutimos as tarefas feitas e a fazer, mas muita coisa é resolvida pelo chat, o que ajuda bastante.”
Para não ter problemas e ficar em dia com o Fisco, contratei um escritório de contabilidade para resolver toda essa questão tributária.”
Lucas Vasconcelos
As dificuldades, no entanto, foram compensadas por um aumento de 200% na renda. O modelo de contratação de Vasconcelos é o de prestação de serviço. Ele abriu uma empresa no Brasil e presta serviço diretamente para a companhia americana. A remuneração é feita por meio de criptomoedas e é tributada como ganho de capital se houver lucro na venda. “Para não ter problemas e ficar em dia com o Fisco, contratei um escritório de contabilidade para resolver toda essa questão”, diz o brasileiro.